Jorge Monteiro herdou o legado da casa do café de seu Pai. Faz o seu trabalho com prazer e é fascinado pelo mundo do café e pelas suas surpresas. Tem uma das casas mais antigas do bairro da Madragoa, A Flor da Selva. A torra de café aqui, é única sendo dos poucos em Portugal a torrar a lenha.
Junta De Freguesia de Estrela (JFE): Este café dá um cheiro ainda mais peculiar à Madragoa?
Jorge Monteiro (JM): Sim, já é histórico, este aroma da torra do café, desde 1950. Desde essa altura que as pessoas se habituaram a um ambiente do que faz parte esta aroma do café acabado de torrar.
JFE: O facto de estar aqui, na Madragoa, também dá uma alma própria ao café Flor da Selva?
JM: Sabe, antigamente quase todos os bairros tinham este tipo de fabriquetas, por assim dizer, porque era artesanato. Produzia-se o café para uma determinada área de influência e por isso quase todos os bairros teriam uma ou até mais do que uma torrefação, como era o caso de Campo de Ourique. Nessa altura, o café era considerado um produto fresco: não era um produto para ser vendido a longo prazo, mas sim para ser consumido logo após a torrefação. E então, todas essas casas torravam o café semanalmente para abastecer as pessoas, que iam comprar o seu pacotinho de café fresco para essa semana. O que, de resto, ainda hoje acontece na nossa casa: as pessoas compram o café torrado naturalmente e sem nada artificial, para ele poder durar, em boas condições, o tempo que as pessoas levam a consumi-lo, que pode ser uma semana ou um mês - depende se é moído ou não. Não quer dizer que ele se estrague depois desse prazo, mas perde sempre alguma frescura e perde a sua juventude; fica velho e perde a graça que ele tem na sua forma natural. Passado esse tempo, o aroma de frescura acaba por passar, ainda que o café se mantenha bom para ser consumido.
JFE: Por isso é que nas grandes superfícies ele está embalado em vácuo?
JM: Não é bem em vácuo. Há embalagens que têm válvula ou até fazemos um pequeno furo, porque ele vai expelir o seu gás, enquanto está fresco. E o aroma vem da libertação desse gás. Depois, estando exposto ao ar, ele acaba por absorver tudo isso e é aí que se dá o seu envelhecimento, mais rapidamente. Faz parte, dado que é um produto natural e vegetal, como tantos outros. A não ser que seja preservado artificialmente com conservantes.
JFE: A sua história confunde-se com a história do café e com a própria história da Madragoa?
JM: Sim. Nós, aqui, sempre fomos a casa do café. Qualquer pessoa que aqui nasceu, ainda hoje se lembra de nós, desde os tempos de criança, como a casa do café. Era um elemento que incontornável da Madragoa, desde que o meu pai para aqui veio, em 1950. Tínhamos a torrefação e tínhamos uma loja na Rua da Esperança, onde era vendido o café que torrávamos aqui em cima. Depois começámos a expandir e, entretanto, o meu pai trouxe os irmãos que tinha lá na aldeia, em Melgaço, e ensinou-lhes este trabalho e fez com que eles se estabelecessem com casas idênticas à que tínhamos na Rua da Esperança, para dar escoamento ao produto que íamos torrando. Portanto, começámos a sair fora da área de influência e a criar novas zonas de distribuição, para onde todas as semanas ia o café fresco que torrávamos semanalmente. É. aliás, uma prática que dura até hoje.
JFE: Ainda hoje vêm cá pessoas comprar café fresco para a semana?
JM: Exatamente. Aqui ainda fazemos a torra semanalmente, para abastecer essas pessoas e também escritórios e a indústria hoteleira. O café é torrado e preparado. Não temos stocks. Fazemos tudo por encomenda. E aconselhamos sempre as pessoas a consumir como um produto fresco e não para armazenar. Mantemos essa prática desde o início, tal como o processo de torra, que continua a ser a lenha, como sempre foi: além de ser um processo amigo do ambiente, é um processo que também é amigo do próprio produto. As pessoas comparam, muitas vezes, o café torrado a lenha ao pão cozido a lenha ou às sardinhas assadas no carvão.
JFE: As grandes marcas não torram com lenha?
JM: Não, não. Nós somos os únicos em Portugal, e pela Europa, poderá haver outras pessoas a torrar a lenha, mas com este sistema de torra a lenha, que se conheça e segundo o fabricante desta máquina, existe somente uma outra empresa, na Suíça.
JFE: Que vantagens há, para além de ser amigo do ambiente?
JM: Enriquece o sabor do café e o aroma. Lembre-se que os combustíveis naturais, como a lenha e o carvão, só começaram a ser abandonados no século passado. Só aí começaram a utilizar o gás. Mas a lenha e, por conseguinte, o fogo, remonta ao princípio da Humanidade. É um elemento natural, que nos acompanha desde que o Homem começou a ter a sua identidade, como animal inteligente. Por isso, torrar a lenha tem todas as vantagens, menos o facto de ser mais dispendioso e mais trabalhoso. É uma arte que nós conservamos por capricho e não por ser melhor para o nosso negócio. E é duma riqueza tão grande que, por nós, não a iremos abandonar. E, além disso, criaram-se grandes monopólios e grandes empresas que fazem o café à pressão, o café comercial - como costumo dizer - e nós, por esta opção, escolhemos um caminho diferente que nos pode dar oportunidades de mercado.
JFE: Era um homem diferente se o café não fizesse parte da sua vida?
JM: Eu estudei, mas o meu pai tinha esta empresa e os meus tempos lives eram passados aqui. Portanto, isto acabou por ser um elemento que fazia parte da minha própria existência. Acabei por fazer um curso de Engenharia Civil e tive oportunidade de fazer carreira dentro dessa área, mas acabei por ficar aqui com o meu pai. Até porque, naquela altura, quando acabei os estudos, ele tinha problemas de saúde e por vezes tinha que se ausentar da empresa. E acabei por me radicar aqui. Mas foi uma opção feliz, porque continuei com uma obra e com um trabalho que me dá prazer, porque o mundo dos cafés é um mundo infinito e cheio de surpresas e possibilidades que nos chegam de todo o mundo. E isso dá-nos uma perspetiva de vida e mantém uma atividade de prospeção e de enriquecimento de conhecimento: estamos sempre a descobrir novos cafés, novas regiões, novos produtores, novas castas, etc. Além de alimentar também outra coisa que nos interessa muito: perceber como é que as pessoas fazem, torram e consomem café no mundo.
JFE: Mudou muito?
JM: Sim. O café é uma iguaria, sabe? Normalmente, em Portugal o café é uma bebida preta que se bebe com açúcar. Não temos o culto de apreciar o café na sua devida natureza. Os cafés são muito semelhantes aos vinhos: em termos de castas, de produção, de preparação,… Tudo isso tem muita envolvente. Hoje em dia e cada vez mais, há pessoas que se interessam em conhecer as diversas regiões do mundo onde se produz os cafés, as próprias castas e a forma como se prepara o café - porque a preparação é a forma de extrair a semente do fruto, e a esse ato chama-se Preparação e pode ser feito de várias formas, e vai conferir ao café características muito distintas e uma identidade própria. Pode ser seco ao sol, por via húmida, pode ser lavado, pode ser fermentado, etc. Hoje em dia, já há, em Portugal, pessoas que se interessam por isso, mas lá fora há muito mais. Por cá ainda se consomem, acima de tudo, marcas de café. Há muita gente que nos visita e que no fim diz ‘Tive uma aula sobre café, hoje’. Gostamos sempre de ensinar as pessoas que se interessam pelo café. Faz parte da cultura dum povo. Faz-me sempre muita impressão pensar que há pessoas que não sabem que a ervilha vem duma vagem, nem se interessam por saber.
JFE: O facto de estar num negócio que tem por base um produto natural e histórico, tornou-o um homem mais interessado e mais interessante?
JM: Isto constrói-se com a nossa própria sensibilidade. Não somos nós que mudamos pelo facto de estarmos a trabalhar com isto. Se, por exemplo, eu estiver a trabalhar com café, tenha essa dedicação; mas também a teria se estivesse numa área totalmente diferente. Penso que são formas de estar: quando tomamos uma coisa pela mão, gostamos de ir à profundeza e ao máximo de conhecimento.
JFE: Sabemos que cerca de 98.7% de uma ‘bica’ é água. Que importância dá à água, um homem do café?
JM: A água é importantíssima. Quando se produz o café como nós o fazemos, duma forma natural e com toda a preocupação com o que é de primeira qualidade, para extrair a melhor bebida, há outros fatores de elevada importância: não só a temperatura da água, como a qualidade da mesma. Se for uma água com um pH Neutro, será o ideal, para não alterar as características do café; bem como uma água filtrada, para garantir que não tem partículas que possam alterar o sabor do café. Mas a temperatura da água também é muito importante, para não cozer o café. O ideal é ser sempre abaixo dos 95º.
JFE: O que é um bom café?
JM: É um café que é bem preparado, ou seja, provém duma boa colheita; com uma boa torra e obedece a uma boa extração. Se cumprirmos todos estes processos encadeados, temos uma bebida divinal.
JFE: Nunca com açúcar…
JM: O café não é para se beber com açúcar. Isso é a bebida preta que as pessoas bebem sem apreciar. Até havia quem dissesse que bica eram as siglas de Beba Isto Com Açúcar… É um hábito. Tanto que o café é um calmante e um antidepressivo. A cafeína tem essas propriedades. O que faz realmente as pessoas ficarem mais ativas e alerta, é o açúcar que se adiciona. Há cafés que já trazem açúcar de origem, porque ele foi utilizado para conservar o café, como conservante que é. A partir daí, as pessoas juntam as 10g de açúcar que vem num pacote - se bem que, felizmente, agora a tendência é diminuir essa quantidade. Aquilo é uma bomba energética!
JFE: Há quem defenda que o melhor café é o que é 100% Arábica. Concorda?
JM: Há 2 espécies de café que são diferenciadas tanto no mercado, como na produção agrícola: os Robustas e os Arábicas. Os Robustas, geralmente, são cafés de sequeiro, de zonas mais baixas, onde há monções e fortes chuvadas, mas não são zonas tendencialmente húmidas e, portanto, é um café que, na sua própria estrutura, acabam por ser muito diferentes dos Arábicas, que são cafés de montanha, de terras altas, cafés que são de regiões com muita humidade, muita neblina e com outro posicionamento nas áreas de produção. A diferença, é que os Robustas conseguem ter um teor de cafeína mais alto, são cafés mais resinosos e com notas de prova mais terrosos, com mais madeira, mais amargos; enquanto os Arábicas são cafés mais viçosos, mais verdinhos, com maior humidade e muito aromáticos, aos quais se podem dar mais nuances, como se faz nos vinhos, e têm menos cafeína; portanto, são os cafés mais nobres, são aqueles que são mais apreciados…
JFE: Mal comparado, são como a flor de sal…
JM: Sim, mas a flor de sal é só um elemento, enquanto os Arábicas são um mundo impressionante. Por exemplo, temos ali uma casta da Colômbia que é um café sozinho. Depois, temos aí Caturras, Catuai e outras castas sozinhas. Depois há Bourbons, o Amarelo, o Vermelho. Existem todo esse tipo de cafés para serem apreciados. E depois também influencia a preparação, o ano da colheita, etc.
JFE: Quantos cafés toma por dia?
JM: Geralmente, tomo 2 ou 3 cafezinhos por dia. Às vezes, põem-me um café à frente, para provar, porque o meu filho é o Mestre de Provas, e quando há um café novo, ele põe-me uma chávena para provar e eu delicio-me, porque são cafés sempre muito bons, porque ele tem uma grande sensibilidade para escolher cafés de alta qualidade.