João Lagoas é o rosto da Ourivesaria Rosa D’Ouro, e devido à sua paixão por relógios, fez deste utensílio imprescindível a sua profissão, tendo aprendido todos os truques com o seu pai e outros relojoeiros. Atualmente faz a manutenção semanal dos relógios da Assembleia da República e na sua loja dá especial atenção a relógios franceses e de coluna.
A sua dedicação a este ofício permite olhar para o tradicional vs. moderno de forma particular e a pensar no tempo como um bem de grande valor.
Freguesia de Estrela (JFE): João, de onde vem o nome Rosa D’Ouro?
João Lagoas (JL): É um nome que surge nos anos 50. Houve uma firma criada por vários sócios, e chamava-se Ourivesaria Rosa D’Ouro, porque a mulher do proprietário da altura se chamava Rosa. Então o nome advém do nome da senhora. Nós, entretanto, adquirimos as quotas nos anos 80 e já adquirimos a firma com este nome e mantivemos.
JFE: Como começou na relojoaria?
JL: O meu pai é relojoeiro desde os 14 anos.
JFE: E ainda é?
JL: Hoje em dia já não, devido à visão e acima de tudo à falta de paciência, já está com 78 anos. Mas, sim, aprendi muita coisa com o meu pai e com as pessoas que trabalhavam para ele. Eu era miúdo e o meu pai dizia-me “É necessário ir ao relojoeiro buscar umas peças ou fazer um recado”, e eu ficava ali, de volta deles, a aprender como é que se tirava um relógio da caixa ou um determinado tipo de coisas. Portanto, desde criança que convivo com a relojoaria. Normalmente, quando eu estava muito em cima do meu pai, ele dizia-me “Olha, toma lá um despertador e vai desmontá-lo”. E eu conseguia desmontar o despertador, mas depois aquilo já não voltava a ser relógio.
JFE: Fez alguma formação na área?
JL: Formação, propriamente dita, não fiz. Isto é uma arte que aprendi com outras pessoas, mas não numa escola. A minha formação foi sempre com relojoeiros, e foi com eles que fui aprendendo e adquirindo peças. Regra geral, mexo mais em relógios de sala e de coluna. Relógios de pulso também, mas para aqueles mais complicados tenho o atelier que me trata deles, até porque não tenho tempo para estar a atender e a fazer essas manutenções. Agora, tudo o que sejam relógios franceses e de coluna, isso sou eu que faço.
JFE: O que é um relógio de coluna?
JL: São os relógios de caixa alta, como os de parede, de sala… E isso consegue-se, com facilidade, reparar. Recentemente, também aprendi muitas coisas com o Sr. António Franco, que estava na Assembleia da República.
JFE: Os relógios da Assembleia da República e da Basílica da Estrela dão muito trabalho?
JL: Quando se faz coisas com gosto, não se trata bem de trabalho. Os da Basílica da Estrela são casos pontuais, ou seja, eu vou lá quando sou necessário. Na Assembleia da República, é um trabalho regular. O que faço, basicamente, são acertos, lubrificação, etc. Na Assembleia da República, faço a manutenção de todos os relógios, que são uns 13 ou 14. Quando comecei, há cerca de 3 anos, havia pelo menos 4 ou 5 relógios parados. Eu reparei 3, que estão a funcionar, que eram dos mais importantes. E a manutenção é feita semanalmente: dar corda, fazer o acerto…
JFE: Só dá corda uma vez por semana?
JL: Normalmente, os relógios de corda aguentam 7 ou 8 dias. Há uns que até aguentam um bocado mais. Daí ter de ser uma coisa feita semanalmente. Há de vários tipos de relógios, na Assembleia da República, mas sobretudo franceses e ingleses, e existe um elétrico, na Sala do Hemiciclo. Este também requer atenção, porque basta um corte de energia ou uma falha e o relógio precisa de ser acertado. Para mim, o mais emblemático é o da Sala do Senado, que é um relógio francês e que pelo sítio onde está colocado e a própria máquina em si, é um relógio fantástico. Depois, existe um relógio, que consta que está lá desde a época do antigo mosteiro, que é um relógio com uma dimensão não muito usual e que, felizmente, também está a funcionar bem.
JFE: Tem uma predileção por relógios franceses, não tem?
JL: Sim, porque são aqueles com os quais me sinto mais à vontade para poder desmontar e reparar, e tornam-se mais fácies de manusear, porque as peças têm uma dimensão maior.
JFE: Este ofício está em extinção?
JL: Posso dizer que nos últimos anos tenho-me apercebido que já não há muitos locais onde se possa fazer uma simples reparação. Têm-me aparecido clientes de vários pontos da cidade, porque tem havido alguma dificuldade em encontrar sítios onde se façam reparações de relógios. Normalmente, são pessoas mais antigas, que muitas delas deixaram de trabalhar e, hoje em dia, não é muito usual vermos um jovem a ser relojoeiro. Portanto, quem se dedica e quem tirou o curso de relojoaria, muitas vezes vai fazer uma especialização fora, nomeadamente à Suíça, e os bons ficam lá, a trabalhar com as grandes marcas. Por aqui, havia dois relojoeiros na Calçada da Estrela, um na Rua de São João da Mata. Hoje em dia, não há…
JFE: Acha que o desinteresse é por ser um ofício em que as pessoas não associem a um bom modo de vida ou é por julgarem que a relojoaria clássica está em declínio, dada a proliferação da oferta elétrica e digital?
JL: O que tenho notado é que há muitas pessoas que, pura e simplesmente, deixaram de utilizar relógio. O telemóvel, hoje em dia, serve para várias coisas. Depois, os relógios de pilha também vieram tirar expressão aos relógios mecânicos. Quem tem um relógio mecânico sabe que a exigência é outra: o relógio de pilha é colocar no pulso e utilizar até a pilha acabar, já um relógio mecânico, nós sabemos que vai sofrer pequenas alterações de funcionamento. E muitas das vezes, as pessoas querem algo que funcione e esteja certo. Isto, para uma parte das pessoas. Para outra parte, para quem gosta de relógios, como, por exemplo, no meu caso, só uso relógios mecânicos. O que tem aparecido também, são pessoas que têm relógios de família e aquilo traz-lhes alguma nostalgia, de ouvir o relógio bater, no corredor ou na sala, e as pessoas mandam reparar. Depois, os jovens de hoje não querem relógios de coluna em casa, nem querem nada que faça ruído: querem tudo minimalista, branco, móveis brancos e não querem nada que tenha que se cuidar semanalmente.
JFE: Acha que a forma como nós, e em especial as gerações mais novas, lidamos hoje em dia com a relojoaria, está em linha com a forma como tratamos os afetos? Ou seja, as coisas têm de vir ao nosso encontro e ser autossuficientes, e não precisarem de ser cuidadas…
JL: Eu acho que sim, especialmente as gerações mais novas. Existe o facilitismo da internet.
JFE: Como especialista de tempo, ainda que mais na vertente da medição do que na da fruição, acha que estamos a usar bem o tempo que nos sobra, do tempo que estamos a poupar?
JL: A mim, parece-me que, muitas das vezes, o tempo que nos sobra é tão pouco, que há sempre algo que fica por fazer. A vida, hoje em dia, é levada tão a correr, que nem nos dá tempo para parar para pensar naquilo que poderíamos ter feito ou naquilo que ainda nos falta fazer. Andamos todos a pensar muitas vezes em nós próprios, sem pensar naquilo que se deve fazer. As pessoas sabem que deixaram de ter tempo para fazer coisas importantes, mas também não conseguem parar para pensar.
JFE: Quem conserta relógios dá mais valor ao tempo?
JL: As pessoas necessitam do relógio como utensílio para ver as horas e, para isso, preferem um relógio de pilha a um mecânico. Muitas das vezes, o facto de quererem reparar um relógio de família ou um relógio que lhes diz algo, creio que é para parar e pensar talvez em tempos que já passaram e tentar preservar um pouco as memórias desse tempo.
JFE: Tem feito boa gestão do seu tempo na vida?
JL: Creio que sim. Acho que todos nós, com a pandemia, aprendemos a gerir ainda melhor o nosso tempo: a parar, a pensar, a refletir sobre o que importa e sobre o que podemos mudar para melhor. Mas ainda há projetos para fazer e o tempo que vem já está repensado para isso.
JFE: O que se perdeu no tempo, que gostava que fosse recuperado?
JL: Muitas vezes só nos apercebemos do que tínhamos quando o perdemos. Acredito que quando não paramos e levamos um rumo é difícil parar e pensar no que podíamos ter feito de diferente.
JFE: Se só pudesse escolher um relógio de pulso para toda a vida, qual seria?
JL: Eu gosto de relógios de pulso, mas ainda mais dos de bolso. Se for de bolso, sem dúvida que seria um Patek Philippe. De pulso, o que uso no dia-a-dia são relógios Breitling. Mas um relógio intemporal, para mim será sempre da marca Patek Philippe.
JFE: É das poucas marcas que tem o selo COSC - Contrôle Officiel Suisse des Chronomètres.
JL: Sim, a Patek Philippe, a Omega, a Bretiling, a Rolex… Só 5 ou 6 têm.
JFE: Acredita que vai acontecer aos relógios, o mesmo que está a acontecer com os automóveis e com a arquitetura, ao nível da digitalização e eletrificação de quase tudo, mas também ao nível da minimização das linhas? Olhar várias vezes para o Mosteiro da Batalha e, em linguagem relojoeira, pensar que aquilo seria uma Complication Horloger. Já ninguém faz coisas para complicar, a não ser que alguém pague por isso. Está a perder-se a preocupação com o legado cultural e estético, também na relojoaria?
JL: É inevitável que vá acontecer. Não tenho qualquer dúvida. Hoje em dia, a grande parte dos relógios que me aparecem para trocar, nomeadamente pilhas, são relógios que de relógio têm muito pouco. Quando os abrimos conseguimos substituir a pilha e, no fundo, aquilo a que chamam relógio consegue também atender o telefone, dar horas, medir calorias, etc. Mas temos duas partes: tal como acontece nos automóveis ou mesmo na arquitetura, há sempre um revivalismo, o chamado vintage, em que as pessoas tentam transformar o moderno em algo que pareça antigo, e na relojoaria acontece o mesmo. Ou seja, existem os clientes que querem algo que dê horas, funcione e esteja sempre certo; e existe a outra parte, de pessoas que veem o relógio como uma máquina. Isso acontece também com os automóveis. A parte dos relógios, posso dizer que tenho vários clientes que são adeptos da relojoaria, mas da antiga; ou seja, querem um relógio que tenha uma máquina, que seja mecânico e que tenham que dar corda e cuidar. Essa parte não parou. Hoje em dia, temos as grandes marcas que continuam a fazer relógios mecânicos. Por exemplo, no passado, a Rolex tentou fazer um relógio de pilha e aquilo não correu muito bem e, por isso, hoje em dia continuam a fazer somente relógios mecânicos. E a própria Patek Philippe também fez isso. Claro que, a nível de aspeto, têm os mesmos modelos que tinham há 20 anos, mas aumentaram-lhes o tamanho. Portanto, deixamos de ter caixas ditas normais ou mais pequenas e passamos a ter o mesmo modelo com uma caixa maior, para acompanhar um pouco as tendências.
JFE: Tem um projeto educativo com escolas aqui na Estrela.
JL: O projeto que tenho acaba por conseguir integrar um novo conhecimento da relojoaria, na idade em que as crianças estão a aprender a ver as horas. O que faço é uma aula, por assim dizer, em que lhes explico como surge a noção de tempo, como é que se divide o mostrador dos relógios nos quadrantes, e depois fazemos um trabalho que consiste em decorar o mostrador dum relógio e depois colocamos um relógio quartzo nesse mostrador e passa a ser o relógio da sala de aula. Sendo que, nesta parte, eu explico também a evolução do relógio, os diferentes tipos de relógios e como é que tudo funciona, como por exemplo as engrenagens e esse tipo de coisas.
JFE: Se uma dessas crianças se interessar verdadeiramente pela relojoaria, que conselhos lhe daria? Para onde deveria ir estudar, por exemplo?
JL: Hoje em dia e a nível de reparação, o ideal será sempre fazer um curso nesta área. Não tendo conhecimentos ou quem a possa apoiar, como eu tive quando era criança, o ideal é começar do zero.
JFE: Se não fosse relojoeiro, o que podia ter sido?
JL: A minha formação inicial era para Economia ou Gestão. Mas a vida deu uma volta e acabei por abrir um negócio e perceber que havia a necessidade de reparar e manter relógios; e cá estou. Faço isso com enorme agrado e dedicação.
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