Tia Ana Rosa,
nascida e criada na Madragoa. Relata como é bom viver num bairro tão histórico
como este. O companheirismo e alegria que a acompanham transparece na forma
como vive e como relembra as suas memórias. É uma figura “muito ativa e sempre ganhou a simpatia das pessoas”
Junta de Freguesia de Estrela (JFE): Nasceu na Madragoa?
Ana Rosa (AR): Nasci, em 1934.
JFE: O que é a Madragoa, para si?
AR: A Madragoa tem muito valor. Para já, porque nunca conheci outro bairro. Havia muita vizinhança boa: quando um não tinha, tinha outro. As pessoas davam-se todas bem, embora às vezes houvesse zaragatas e era do pior! Havia varinas muito bonitas, naquela altura, sabe como é... E quando havia zaragatas, a gente deixava o prato e deixava tudo e vinha tudo para a rua!…
Era assim… Havia os
saltimbancos, havia os robertos, havia uma coisa muito engraçada: toda a vida houve crimes horrendos; e então, os ceguinhos,
que andavam com aqueles folhetos a cantar, mal sabiam que havia uma coisa
qualquer ou que uma matou o filho e o pôs no forno e essas coisas, eles andavam
a cantar e a gente vinha para a rua e andava a atrás dos ceguinhos…
JFE: Era o Jornal da Noite da altura…
AR: Era isso mesmo. Eles cantavam e a gente aprendia também. Andavam os miúdos descalços sempre atrás deles, e eles paravam nesta esquina e na outra e cantavam a cantiga e toca a andar. Era muito giro!
JFE: Mas ainda há esse espírito de vizinhança na Madragoa, não há?
AR: Ainda há. Quer dizer, esta geração nova, como aqui ainda têm os avós e mães que são de outro tempo, ainda colaboram. Como na marcha, por exemplo. E noutras coisas. Mas a vivência das pessoas antigas, já pouco há. Há muito pouca gente do meu tempo e as poucas que há já não estão bem de cabeça.
JFE: Mas há muito respeito pelas pessoas mais antigas, no bairro…
AR: Há! Eu, não tenho razão de queixa nenhuma! Mas, mesmo assim, a gente tem que perceber que a época é outra e o respeito já não é o que era. O que acho péssimo, é a linguagem. Há uns tempos, fiquei siderada ao ver uma mãe com um garotinho, para aí de 2 anos, o miúdo queria não sei o quê, e ela com 2 palavrões para o garoto… Por exemplo, as pessoas vão a passar e as pessoas com este e aquele palavrão. A gente tem que ver que há muitas pessoas que não são daqui e, embora saibam o que é, tem que se ter tento na língua. A malta nova daqui, todos me conhecem. Mas, sabe, eu tenho uma coisa que aprendi com a minha mãe: eu digo Bom dia, mas digo o nome da pessoa.
JFE: Claro. Faz toda a diferença… De tudo o que se perdeu na Madragoa, o que é o mais importante para si?
AR: A vizinhança. A colaboração que havia. Ainda há, mas pouco. A gente se tinha uma falta ou algo do género para comer, pedia emprestado ao vizinho. E eu falo muito da janela! Um dia, percebi que a Odete foi comprar ovos e estavam esgotados; e eu, aqui da janela, percebi e disse-lhe para vir cá a casa buscar meia dúzia de ovos, que eu tinha aqui. Era assim. Olhe, faz-me pena os estrangeiros estarem à procura de coisas, que a gente pode ajudar. Ainda ontem, estava ali no 27, na Esperança, e estava uma pequena que queria ir para Alcântara e então, pelo telemóvel, eu percebi que ela queria ir para Belém e ajudei-a. E outro dia, no Cais do Sodré, estava uma senhora com um garoto, que queria ir para Cascais, de elétrico! E eu disse-lhe: ‘Do lado de lá’. E ela depois já estava na estação e estava sempre a dizer-me adeus. E outra vez, no Terreiro do Paço, outra senhora com uma criança e o marido, estava com uma nota para entrar no 15, e ninguém teve o vagar de lhe explicar que o elétrico não faz troco e só aceita moedas. Foi preciso eu falar com o condutor dum elétrico e pedir-lhe o favor de lhe trocar a nota de 5€ e lá foram eles. Não custa nada a gente ajudar. Aqui, costumam dizer: ‘Ai, na terra deles, também não ajudam nada!’. Não interessa: interessa somos nós e a nossa forma de ser…
JFE: E se não dermos, também nunca vamos receber…
AR: Exatamente!
JFE: E há muita gente de fora que está a vir para a Madragoa, precisamente por esse espírito, não é?
AR: Ui, muita gente! Estava aqui uma brasileira, que veio para cá com a filha e o marido ficou no Brasil. E ela trouxe uma amiga da filha, garotas para aí com 10 anos. A miúda e a amiga, iam ao pão, para o pequeno-almoço. Mas em vez de virem pela mesma rua, vinham por outra. E a mãe pensou que elas se tinham perdido. Foi uma aflição aqui no bairro. E toda a gente se reuniu para ajudar a senhora. Ela depois teve que ir viver para Cascais, para casa duma amiga, porque aqui era tudo muito caro para ela. Isto é um bairro muito central, sabe como é. Mas ela ia com tantas saudades da Madragoa.
JFE: E o que está melhor do que noutros tempos, aqui na Madragoa?
AR: Para ser honesta, gosto de tudo na mesma. Embora as pessoas que estão aqui na Rua Vicente Borga, estão ali sentados à porta e a gente fala e dá Bom dia, isso está na mesma.
JFE: Porque é que as Marchas são tão importantes?
AR: Ui, muito importantes! A minha marcha é sempre a melhor!
JFE: Há uma ideia instalada sobre alguma falta de identidade e de orgulho em ser de Lisboa, em relação à maior parte das pessoas que cá vivem, por comparação com as pessoas do norte de Portugal. Mas nos bairros antigos isso não parece ser tão verdade. As pessoas da Madragoa ou de Alfama são tão orgulhosas de ser Lisboetas, como alguém da Ribeira ou de Miragaia é orgulhoso do Porto ou um bracarense por ser de Braga, não é?
AR: Exatamente! Ah, mas os minhotos são muito especiais! Eu fui muitos anos passar férias para uma aldeia que era perto dos Arcos de Valdevez. E eu gostava muito do Minho. Corri aquela zona toda do Lindoso, de Caminha. O meu marido, que Deus tem, adorava aquilo.
JFE: Quais são os locais mais emblemáticos da alma da Madragoa?
AR: O Convento das Bernardas, que era um dos sítios mais bonitos. Quando foi restaurado, muita gente não quis lá ficar. Mas o convento antes de ser restaurado, tinha montes de gente. E então, logo aí a Madragoa morreu um bocado. Depois, veio esta lei de porem as pessoas fora para porem o alojamento e ainda foi pior: muita gente tem abandonado a Madragoa e cheios de pena de a deixar. Pessoas que nasceram aqui e que tiveram que ir para longe, onde não conhecem ninguém. Conheço uma rapariga que teve de ir embora daqui e chora de noite e de dia, com saudades da Madragoa. Olhe, eu não jogo, mas se me saísse alguma coisa dos ‘Milhões’, acredite que eu nunca saia deste bairro. Mas para quê, diga-me lá? Eu comprava uma bela casa, num sítio onde não conhecia ninguém?
JFE: A Madragoa é como se fosse um amigo?
AR: Para mim, é. É o bairro onde me sinto bem. Às vezes quando venho de táxi e chego aqui, sinto isso: ‘Ah, já estou no meu bairro!’. Eu sou uma fala-barato, não sou?
JFE: É um prazer ouvi-la! O que aprendeu de mais útil com o passar da idade, Ana?
AR: Aprendi muito com o meu namorado, porque eu nunca tinha tido namorado e ele é que me ensinou tudo! Já tinha 21 anos. Eu era muito dançarina. Ia muito ao baile. Toda a vida adorei dançar e de cinema. Ainda gosto. E eu dançava só com pessoas mais velhas, para me ensinarem. E depois ia dançar com um rapaz novo e começavam a falar-me em namoro e fugia a sete pés. Eu só queria era dançar e ser livre! A gente ia para o Ordem e Progresso para dançar, ali na Rua do Conde. E quando estava fechado, íamos para o Museu de Arte Antiga, que ainda não era assim. Tinha salões lindos e um porteiro em cada porta. E ficávamos nos maples a olhar para os quadros, à espera que os salões abrissem. Mas a gente não percebia nada daquilo! Depois, íamos com o meu pai para o Jardim 9 de Abril ver a ponte levadiça da Rocha. Não havia mais nada para fazer! E também íamos para o Jardim da Estrela: 5 tostões para entrar, os pequenos. Tinha um escorrega muito grande lá em cima. Um dia escorreguei nele e vim de cuecas para casa. Levei um enxerto de porrada que nem é bom lembrar!
JFE: E entretanto começou a namorar…
AR: Mas já em Almada. A minha mãe perdeu a casa daqui e então tivemos que ir viver para Almada. Mas o meu marido era aqui da Estrela. Mas entretanto foi viver para Almada e foi lá que eu o conheci
JFE: Mas nunca mais parou de dançar…
AR: Ah, se soubesse! A Incrível Almadense! Conhece? E o Almada, tinha um ringue onde também faziam bailes. Eu e as minhas irmãs, íamos para a Incrível; e depois, quando vínhamos, já tínhamos o farnel arranjado, e sabe como fazíamos para ir para a praia da Costa? Tínhamos um casal mais velho, que tomava conta da gente, e então a gente pegava no cesto, depois de estar a dançar toda a noite, e íamos atrás, na carroça, que vinha de levar a hortaliça para a praça de Almada e depois iam de novo para a Costa. E a gente agarrava-se à carroça e lá íamos, cansadinhas de dançar toda a noite!
JFE: E como iam para Costa na altura? Não havia a ponte…
AR: De barco. O Cacilheiro era barato, a 10 tostões. Um era o Nacional, o outro era o Rio Lena e havia um que era o Évora, mas esse era dos grandes.
JFE: O que faz para estar assim tão fresca e tão bonita?
AR: Olhe, eu acho muita graça, porque às vezes eu troco a idade. Digo que tenho 78, mas eu tenho 87. Eu já fiz canto coral e teatro, com o Boavida, ali na Guilherme (Cossoul). Sempre fui muito ativa e sempre ganhei a simpatia das pessoas. E até havia quem tivesse inveja e diziam que era a vedeta! Por exemplo, todos os meses, nós tínhamos uma visita ao bairro com uma historiadora e saíamos ali do Museu das Comunicações, na Rua dos Industriais. E havia sítios em que a historiadora já não sabia, e era eu que dizia o que aquilo tinha sido. E a visita acabava no lavadouro e eu é que explicava como aquilo funcionava. E depois contava sempre uma anedota.
JFE: E qual é a receita para ter essa memória e ser tão jovem?
AR: Acho que é da gente conviver. Porque há pessoas que não saem. Havia uma rapariga que vivia aqui e vivia muito bem, e andava sempre com o marido. Morreu-lhe o marido, e ela fechou-se em casa. E um dia eu passei por lá, quando ia para o teatro, e ela estava a chorar à janela. Eu perguntei-lhe o que ela tinha e ela disse-me que estava aborrecida. E eu levei-a comigo e consegui que ela mitigasse mais a dor da morte do marido, e começou a ir comigo para o teatro, veio para o canto coral, para os passeios. Mas há outras que não querem. E tenho gente à minha volta que olha por mim. Ainda ontem, a miúda daquele Restaurante, o Danoi, me disse que depois de eu ser operada, se precisar de alguma coisa, é só vir à janela e chamar. E tenho uma vizinha que tem a minha chave, se for preciso alguma coisa.
JFE: Mas também há esse espírito noutros bairros típicos de Lisboa, como Alfama, por exemplo, não há?
AR: Há, mas está a perder-se tudo. Ainda ontem uma amiga minha, que é de lá, me disse: ‘Ó Ana, já ninguém se senta às portas’. Porque as pessoas envelheceram ou já morreram e Alfama também foi despejada. A Marcha de Alfama já não tem lá quase ninguém. Eles vêm de longe para os ensaios! Alfama tem aquela alma. A Mouraria está igual. Sabe quantas pessoas estão atualmente no Castelo de São Jorge, que são originárias dali? Nove! O resto é tudo estrangeiro e Alojamento Local. É uma pena.
JFE: E os jovens cuidam destas coisas da mesma maneira?
AR: Estes têm, felizmente. Há jovens aqui que têm gosto e iniciativas.
JFE: A liberdade é mais importante que a própria vida, Ana?
AR: A vida é mais importante. A liberdade, abusaram muito dela. Há pessoas que não souberam resguardar a liberdade que lhes foi dada. Vale tudo, hoje em dia.
Caso tenha um familiar, amigo ou vizinho com histórias e memórias para
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para geral@jf-estrela.pt com os contactos e a razão pela qual o devemos
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A Comunidade é a maior riqueza da Freguesia de Estrela. É bom viver na
Estrela!